segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Eu fiz o Enem

Eu queria ter elementos mais concretos para falar sobre o ENEM. Por isso, no sábado e no domingo, eu peguei minha caneta preta de corpo transparente, meu cartão de confirmação e fui lá. Sim, eu fiz o ENEM.
O exame é bem organizado. Fui um dos candidatos voluntários para testemunhar o deslacre dos pacotes. Na minha sala só tinha Sérgios. De todos os tipos. Sérgios que estudaram em escola pública, Sérgios que fizeram escolas particulares, Sérgios bem mais novos do que eu, Sérgios mais velhos do que eu.
Houve um Sérgio que foi eliminado porque preencheu o cartão errado e marcou que ele estava ausente. Houve outro Sérgio que reclamou porque no ano passado não levaram em consideração a redação de sete linhas dele. Enfim, o exame atinge todo mundo. Mas todo mundo atinge o exame? Aí eu começo a reflexão sobre o ENEM do ponto de vista de alguém que lida com educação há algum tempo.
Definitivamente as provas do ENEM não são para qualquer um. O nível da prova está claramente acima do nível médio dos alunos oriundos da escola pública. Partindo dessa afirmativa, podemos perguntar: o nível da prova é mais difícil do que deveria ser? Ou: o nível da prova é adequado e a escola pública é que não prepara o aluno de forma satisfatória?
Minha leitura é a de que a prova é bem feita e é feita para testar o letramento linguístico e matemático do aluno. Isso é muito positivo. Eu penso que a prova é excelente para quem quer ter alunos safos e bons na sala de aula de um curso superior. Eu, como professor, quero. Nada de decorar fórmulas e gramática. Sem essa de saber quais são os afluentes do Rio Amazonas pela margem direita. Esqueça esse lance de xis é igual a menos b mais ou menos raiz quadrada de delta. Isso ficou para o antigo vestibular.
O conhecimento que é testado no ENEM é o conhecimento aplicado. As únicas expressões de metalinguagem que me chamaram a atenção na prova de linguagem foram “frase adversativa” e “coesão por sujeito oculto por elipse”. Fora isso, a prova exigiu trabalho com gêneros e interpretação. Aí, quem tem capacidade lógica e um maior acervo sociocultural leva vantagem. Aí o aluno da escola pública leva desvantagem.
Capacidade lógica é algo que é exercitado e estimulado. Capacidade lógica se aprende. No entanto, salvas as exceções, as escolas públicas ainda estão no modelo linear de transmissão de informação. Depositam dados na cabeça do aluno, naquilo que na década de 70 Paulo Freire chamava de educação bancária. Poucas escolas, sejamos francos, trabalham com o conhecimento, que é a informação aplicada. Poucas são as que exercitam no aluno o conhecido para a vida, como deveria ser. É muito saber sobre as coisas e pouco saber para a vida.
Na questão do acervo cultural, novamente há uma correlação que privilegia quem faz escola particular. Quem tem em seu horizonte acesso a mais bens culturais tende a ter mais subsídios para aplicar no jogo cognitivo do que aqueles que não têm. Ter acesso à Internet, leitura, tv a cabo e etc faz diferença em relação a quem não tem.
É lógico que essa distinção entre escola particular e escola pública é para fins de argumentação. Há alunos de escola particular que não possuem acesso a bens culturais e há alunos de escola pública que arrebentam nos ENEMs da vida. Mas são pontos fora da curva. De tão fora da curva, viram notícia no Fantástico. Não dá para trazê-los para essa discussão.
O que fazer a partir desse cenário? Uma opção seria baixar o nível de exigência do ENEM. Não gosto dessa ideia. Penso eu, como professor de universidade federal há 22 anos, que o nível do exame é adequado para selecionar um bom aluno. Mas se não devemos mexer no nível, que outras opções teremos? Duas opções, que, a meu ver, não são excludentes, mas são complementares.
A primeira é melhorar a qualidade do ensino da escola pública. Quase um truísmo desnecessário de mencionar. Argumentos a favor dessa melhoria sempre tocam na questão de aumento de recursos. No entanto, a melhoria não requer apenas recursos, como pensam alguns. É claro que mais dinheiro para a educação é sempre bem-vindo. Mas o problema fundamental não é esse. Hoje temos a obrigatoriedade de uso mínimo em educação de 18% das receitas dos estados e da União e 25% da dos municípios. Manaus, por exemplo, comprometia em educação 30% na sua Lei Orgânica, mas a administração do ex-prefeito Amazonino Mendes tratou de voltar para 25% mínimos nos seus primeiros dias. Além do dinheiro que já se tem, há a promessa dos recursos do Pré-Sal. É bastante dinheiro. A questão é que o dinheiro é muito mal usado e muito mal fiscalizado. Mas isso dá um outro texto. O que interessa aqui é que não basta jogar mais dinheiro em um modelo metodológico anacrônico. Esse é o real problema.
A melhoria da escola pública passa necessariamente pela mudança pedagógica. Precisamos de um choque metodológico que desloque a escola pública do foco na informação para o foco no conhecimento, ou seja, na informação aplicada à vida. Isso é o que interessa. É isso que faz falta. É com um aluno com essa capacidade de ler o mundo que vibramos nós, professores, nas salas de aula. Uma mudança de paradigma, no entanto, requer muito planejamento, capacitação docente e é algo a ser alcançado em médio ou longo prazo. E até lá? Até lá entra uma política complementar.
As universidade federais públicas recebem, via ENEM, com o atual nível do exame, somente quem teve a formação adequada ao seu nível de exigência. Essa formação é quase sempre só recebida nas escolas particulares ou nas fundações e colégios militares, que, de fato, estão fora do sistema público. Para reduzir essa distorção, que amplia cada vez mais o fosso entre as duas pontas do espectro social, uma medida possível é a implementação das cotas sociais. Mas essas cotas precisam de um desdobramento que não têm. Não basta que o aluno entre na universidade pública federal por cota social. É preciso ter condição de se manter lá. Nesse sentido, seria muito interessante se o Governo instituísse bolsas para os cotitas. Igualmente importante seria que essa política supletiva tivesse prazo para terminar dentro de um planejamento maior. É muito trabalho pensar tudo isso, mas é para isso que o Governo está aí: para planejar o presente e o futuro. Vontade política é fundamental.
Resumindo o texto: é preciso investimento planejado e bem-feito na educação pública visando à justiça educacional e social em longo prazo. Até lá, o sistema educacional superior precisa ser equilibrado com cotas sociais com bolsa de manutenção durante o curso. A política de cotas deve ter prazos determinados por metas de qualidade, senão corre o risco de atrofiar e perder seu sentido. A cota social, sobre a qual eu tinha minhas dúvidas antes de conhecer mais sobre o ENEM, me parece extremamente necessária. Sim, eu mudei minha opinião sobre elas. Ainda há um bom debate sobre cotas raciais. Fica para outro texto.
O Sérgio eliminado no ENEM foi eliminado porque foi incapaz de seguir as intrusões elementares de preenchimento do exame. No quadro da sala, havia uma instrução escrita assim pela fiscal: “os três últimos candidatos só poderam (sic) sair juntos”. Enquanto problemas básicos, como o do Sérgio eliminado e o da fiscal de sala ainda acontecerem, não dá para não se incomodar com o nível da educação brasileira. Todavia, é preciso mais do que incômodo. É preciso ousar fazer. Quem trabalha de alguma forma com educação deveria fazer o ENEM. É uma experiência enriquecedora sob vários aspectos. Ano que vem, vou de novo.
Por Sérgio Freire, Amazonense, é escritor, professor doutor e tradutor

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